domingo, 21 de julho de 2013

Livro: Filha Mãe Avó e Puta

Obs: post originalmente publicado em 2009

Já há alguns meses, esperando começar a sessão de cinema, fui na Saraiva e comecei a folhear uns livros. Como gostei do título, sentei numa daquelas poltronas e comecei a ler mais atentamente este livro, Filha Mãe Avó e Puta, biografia da Gabriela Leite, que se tornou mais conhecida nacionalmente no lançamento da famigerada Daspu, a putique (tá lá no site)/grife de roupas criada pelas prostitutas/militantes da ONG Davida.

livro filha mãe avó e puta gabriela leite
O livro conta a vida de Gabriela, que aos 22 anos, resolveu se tornar prostituta. Fato que a diferenciava (e que ainda diferencia, de certo modo) é que ela não vinha de uma família desestruturada, apesar de ter seus problemas. Na época, era estudante de Filosofia na USP, tinha um emprego "normal", mas medíocre, e era mãe solteira.

Sentindo que aquilo que vivia, não era o seu caminho, deixou a filha ainda bebê com a mãe, e foi ganhar os seus trocos como puta em zonas, por vezes de luxo, mas na maioria, naquelas de baixo meretrício, como dizem. Ou como eu costumo dizer, puteirinhos fuleiros mesmo.

Sem papas na língua, o livro narra desde os primeiros dias como prostituta, até a militância pelos direitos das putas. E como toda boa puta, o que não falta para Gabriela são boas histórias, que ela conta sempre de maneira muito pessoal, o que deixa o livro bem leve de se ler, apesar do tema ser potencialmente pesado.

Mas não espere encontrar relatos picantes à la Bruna Surfistinha, com posições escabrosas e orgias memoráveis. Neste ponto, o livro é até bem comportadinho, especialmente no terço final, onde o foco é a militância e a luta pelos direitos das profissionais do sexo.

No fundo, Gabriela se desnuda em sua biografia. Mas o que aparece não é o instrumento de luxúria, mas sim, sua personalidade, e se você acreditar nisso, por que não, sua alma.

E apesar da autoria ser atribuída a Gabriela Leite, creio que uma boa parte do sucesso do livro em ser delicioso de se ler pode ser creditado a Marcia Zanelatto, que consta como quem tomou os depoimentos de Gabriela (e que possivelmente transcreveu de maneira fluida as histórias).

Bem, abaixo como sempre, algumas passagens do livro. Grifos meus:

filha mãe avó e puta gabriela leite
Enfrentando os percalços da vida, pela primeira vez levantando a voz:

O sujeito era censor de cinema, portanto, policial federal. Era tido como o detentor de todas as virtudes da família e o único que tinha razão em todas as questões. Mas todo esse verniz somente dissimulava seu verdadeiro caráter de torturador e hipócrita, um autêntico exemplar de demônio da ditadura militar.

Ele e sua esposa tinham uma casa de praia, onde vez ou outra passávamos os finais de semana, quando crianças. O que ninguém sabia é que na praia o digníssimo nos levava para longe da arrebentação das ondas e, debaixo da água, ficava nos bolinando. Fez isso comigo, com Gina e uma prima. Tínhamos 9, 10 anos, e isso nos marcou de tal forma que todas nós temos medo de mar. Guardo imagens tenebrosas das ondas passando pela minha cabeça, eu engolindo água, e ele, guardião da moral e dos bons costumes, passando a mão em meu corpo.

Eu, fraca e magrinha, ainda me refazendo de todo o acontecido, fui chamada à sala para uma conversa de "pai para filha" com o desgraçado. Ouvi educadamente ele me dizer que era imprescindível eu revelar o nome do pai da criança, e depois de fazer um discurso óbvio a respeito do assunto, chegar ao clímax com a criativa frase: "Você tem que se conscientizar de que errar a primeira vez é humano, a segunda vez é sem-vergonhice, portanto trate de, a partir de agora, tomar juízo." Apesar de estar me sentindo completamente desamparada, disse a ele que jamais arrancariam de mim o nome do pai da criança, até porque eu tinha medo do que ele, como policial, podia fazer. Disse, olhos nos olhos: "Não confio em suas boas intenções e sei muito bem que o senhor não tem a menor condição de dizer o que é moral." Encerrei o assunto e voltei para o meu quarto, onde chorei até cansar.

Enfrentei o inimigo pela primeira vez na vida e descobri que é insuportável guardar dentro do coração a ira e a indignação frente à hipocrisia e à maldade. Foi ali que descobri o quanto é maravilhoso falar.

E nunca mais parou de falar...

mulher carregando malas
Decidindo seguir o próprio caminho:

Sentei-me na mureta ao lado da porta e fiquei olhando durante horas para a mala. Eu tinha duas opções: ir embora de vez deixando minha filha ou então bater de novo na porta e pedir perdão por ter me atrevido a um pouquinho de divertimento. Fiquei nesse dilema enquanto o céu escuro ia se tornando azul, depois lilás, depois vermelho... Com o dia claro, resolvi ir embora.

Minha filha já estava com quase um ano. Foi muito, muito difícil renunciar a ela. Mas naquela hora não encontrei outra saída. Eu estava vivendo uma situação falsa e não me considerava uma mulher sem futuro. Por que deveria renunciar à minha juventude e aos meus sonhos, que a essa altura eu nem sabia mais quais eram? Também achei que era melhor para Alessandra. Decidi ir atrás de mim mesma e assumir o egoísmo e o risco de ser uma mulher livre, sem saber ao certo o que era liberdade.

Eu tenho que admirar quem admite ser egoísta. Não é todo mundo que faz isso (admitir, porque ser egoísta, isso é regra geral).

Começando na profissão:

Avenida Rio Branco, 623. era um prédio inteiro dedicado à prostituição. Um mundo à parte que eu sequer imaginava existir. Eu me perguntei se os meus amigos do Redondo conheciam aquele prédio e comecei a rir sozinha: diante do que eu estava vendo, aqueles caras eram teóricos ingênuos.

Procurei dona Elsa no 5º andar. Disse que o marido dela tinha me indicado seu apartamento e que era a primeira vez que eu pensava em me prostituir. Ela disse, rindo: "Todas que chegam aqui dizem a mesma coisa, mas tudo bem. Toda noite você me paga uma diária fixa, independentemente do número de clientes que você fizer. Não trouxe toalha? Pegue uma no armário ali do lado e pode ir para a porta trabalhar."

Já dizia Douglas Adams pra nunca esquecer a toalha.

mulher sexy de toalha comendo banana
Ainda sobre primeiras vezes (profissionais):

Ele me perguntou se eu era nova na casa. Expliquei que era minha primeira vez na zona e ele, meu primeiro cliente. "Todas dizem a mesma coisa", disse ele, rindo e já começando a tirar a roupa. Eu continuava sentada sem saber o que fazer, e foi aí que ele constatou a minha total inexperiência. Só de cueca, sentou-se ao meu lado e me abraçou. Instintivamente, me afastei com nojo e comecei a chorar. Ele viu que, de fato, eu não estava mentindo. Vestiu a roupa me olhando, tirou um dinheiro do bolso e me deu: "Vá pra casa, aqui não é lugar pra você!"

Ouvi pela primeira vez uma frase que escutaria sempre e em todas as cidades em que trabalhei. Essa é uma das maiores fantasias dos homens que procuram prostitutas. Muito tempo depois, já mais escolada, eu respondia: "Estou aqui justamente pra você me mandar pra casa." Eles riam, diziam que eu era sacana e ficavam felizes por não estar corrompendo uma mulher direita.

(...)

Percebi que se continuasse sentada na cama olhando feito uma boba um homem se despir, eu não seria uma boa prostituta. Ora, estava ali para transar e tinha que transar. De mais a mais, eu não era nenhuma virgenzinha. Sequei as lágrimas e voltei à porta para aquela multidão de homens subindo e descendo escadas enquanto as mulheres diziam: "Vem cá, meu benzinho."

(...)

Lá pelo meio dia, recebi o primeiro elogio de um cliente, que disse que eu era muito carinhosa, diferente das outras: eu beijava na boca. Me despedi dele com uma pulga atrás da orelha. Ora, se ninguém beijava na boca, por que eu estava fazendo tão grande sacrifício? Então algo estava errado e eu, definitivamente, teria muito que aprender.

Beijem na boca, meninas, beijem na boca. Garanto que isso vai aumentar a propaganda boca a boca de vocês. =P
puta
Sobre fantasias...

Havia um rapaz muito bonito cuja loucura era a mulher usar um salto bem alto e fino. A gente não costumava trabalhar de salto, pois era muito cansativo. Então, quando o rapaz chegava na portaria, as meninas iam avisando umas às outras e em cinco minutos havia um batalhão de mulheres de salto. Afinal, ele era muito educado e pagava bem. Não nos dava trabalho, pois nem transava. O ritual era o seguinte: ele entrava no quarto com a mulher de salto e pedia para ela andar de um lado para outro. Depois, ela devia colocar o pé sobre a barriga dele, e então começava a sabatina: "Onde você comprou esse sapato? Qual o tamanho do salto? É confortável?" E assim o rapaz gozava, feliz da vida. Era só isso. São os mistérios do desejo.

Como a B. (A vida secreta) sempre diz, o fetiche do outro é coisa estranha.

... E diferenças:

Depois dele tive outros clientes com deficiência física. Cegos, homens com paralisia da cintura para baixo que não tinham ereção mas tinham desejo. Essas pessoas se tornam importantes para nós. Toda prostituta tem clientes assim. Nem todas percebem que esse é um privilégio da nossa profissão, que é uma das suas partes mais nobres, esse aprendizado da solidariedade, da quebra de preconceitos tão enraizados na sociedade, que cultua o belo e exclui a diferença.

As experiências com cafetinas:

Assim passei vários meses na Ruth e ela gostava de mim. Sempre tive sorte com cafetina, não peguei mau-caráter, e quando a cafetina não é mau-caráter, geralmente ela trata as meninas com respeito. É só você não entrar de sola, não fazer baderna, levar as coisas numa boa. E eu sempre fui muito na minha, o meu máximo foi a cena do elevador, quando eu estava na onda de tomar bolinha. Cafetina não suporta mulher que dá problema, e no meio da prostituição isso não é raro.

Uma das muitas situações vividas já na militância, no norte do Brasil:

Logo depois do café, voltamos às prostitutas para levar as camisinhas e as encontramos presas a cadeado dentro da casa. Indagamos o cafetão e ele disse simplesmente: "Mas se eu deixar a casa aberta, elas fogem." Não tivemos dúvida, denunciamos ao governo do estado, sua casa foi fechada, ele foi preso e nunca mais pisamos no Oiapoque.

putique daspu
Sobre a Daspu:

A Daspu é o ápice de todos esses anos de trabalho. Eu sempre tive convicção de que o trabalho social não pode ser uma coisa árida, sem graça, sisuda. Detesto aquela coisa de militante ir pra seminário, falar mal de tudo e usar "a nível de". Para mim o trabalho tem que ser leve, belo, feminino, com arte.

Na passarela, as meninas mostram a cara, soltam a voz e se liberam do estigma. A imprensa internacional todo ano acompanha nossos desfiles, nos entrevista, amplia nossa voz. Elaine Bortolanza, uma amiga minha de Brasília, escreveu um texto para a Revista Global e o título dele resume para mim o que é a Daspu: Passarelas Passeatas.

(...)

Eu gosto da beleza. Minha tia, minha avó, meu pai, todos eles gostavam da beleza. Acho que foi Lênin quem disse que da burguesia devemos copiar o bom gosto e o refinamento. Foi o que decidi levar dos meus antepassados aristocratas. Ver as meninas na passarela vestindo uma roupa bonita, jogando charme, derruba preconceitos. É nisso que eu acredito. A beleza vence a hipocrisia.

Eu acho que ainda não derruba preconceitos, nem vence a hipocrisia. Mas é um começo. Um bom começo.

Em suma, revelações e considerações finais:

Claro que todas as prostitutas, como eu, já gozaram com seus clientes. Por mais que um homem seja desconhecido, ele pode ser o tipo que satisfaz nossas próprias fantasias, sem que se diga nada. Ou é daqueles homens que fazem o coração bater mais forte. No meu caso, minha maior fantasia sempre foi essa: encontrar homens desconhecidos, que me levassem ao orgasmo até com uma trepadinha boba. Todo mundo sabe o que é isso, todo mundo já sentiu uma atração imensa sem motivo aparente.

O duro é você conseguir distinguir se você é um desses casos ou apenas mais uma fingidinha básica da profissão. :)

O mundo não é feito de vítimas. Todo mundo negocia. Alguns negociam bem, outro mal. Mas cada um sabe, o mínimo que seja, quanto vale aquilo que quer. E sabe até onde vai para conseguir o que quer. Com a prostituta não é diferente.

Como fantasia, o desejo de ser puta acompanha todas as mulheres, na cama ou na imaginação. Mas como profissão é outra coisa. O que a puta tem que as outras mulheres não têm? Nada. O que as outras mulheres têm que a puta não tem? Nada.

Como profissional, andando na rua, elas são indistinguíveis. É mais provável que você, na rua, considere uma piriguete qualquer uma puta, do que uma profissional de verdade como tal.

cartaz daspu cd
E finalmente, pequenas reflexões sobre o homem:

O que eu sei e creio que toda grande puta sabe é que o homem é de uma fragilidade imensa. E saber isso eu devo à prostituição. Porque ali dentro do quarto é que eles se mostram. Homem não é algoz, não necessariamente. É mais fácil a mulher ser algoz. Eles têm a primazia na sociedade, nós tivemos que dar nosso jeito, discretamente.

(...)

A maioria dos homens não sabe trepar. Dependem quase integralmente de uma parceira que lhes ensine os mistérios do seu corpo. Eles trepam na quantidade, não na qualidade. Morrem de medo do pau não subir e só passam a usar a imaginação quando começam a ganhar muito dinheiro e vão para a zona pagando para fazer de tudo.

Acham que ser viril é estar sempre de pau duro. Não é. O homem viril é o homem que se dá. Esse homem que está sempre de pau duro, ele só pensa no prazer dele. Pau grande pode ser um problema se o homem não se dá.

Por saber de tudo isso, a puta está mais para amiga do que para amante. A amante quer ser esposa. A puta jamais vai aconselhar um homem a deixar a esposa e a família. Ela vai conversar com ele sobre tudo que o sujeito não conversa com ninguém, e eu já vi muita puta salvar famílias.

Muitas vezes o sexo é quase uma desculpa para o homem poder conversar com sua prostituta predileta. Mesmo que ele fale mal das putas, ele sabe que o que conta dentro do quarto morre ali.

E eu concordo com tudo o que foi dito acima.

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